domingo, 6 de novembro de 2011

Mini-manual de direito dos tratados internacionais.

Escrevi esses textos no começo do segundo semestre de 2011 e, em verdade, foram-me muito trabalhosos. Agora os compartilho com os leitores. A obra de referência utilizada é REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 9. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002.

TRATADOS

INTRODUÇÃO

Tratado é um acordo formal pactuado entre sujeitos de DIP, com o fim de produzir efeitos jurídicos. O que estudaremos doravante, no direito dos tratados, não é a matéria dos mesmos, mas a forma. Como já dizia Kelsen, normas podem ter qualquer conteúdo, desde que observados seus requisitos formais de validade, que é o que estudaremos agora. É claro que, no decorrer do curso, não agora, estudar-se-á matérias abordadas em tratados, como os que versam sobre a guerra, sobre mar, direitos humanos, diplomacia etc.
Por primeiro, para evitar o vôo, insta falar acerca da terminologia do nome tratado. Em diversas ocasiões, os textos abordarão o tratado como acordo, ajuste, arranjo, ata, ato, carta, código, compromisso, constituição, contrato, convenção, convênio, declaração, estatuto, memorando, pacto, protocolo, regulamento[1] e outros nomes mais que quiserem inventar. O fato é que a terminologia a ser usada não nos interessa, é tudo sinônimo, não há com o que se apoquentar. Apenas o termo concordata tem caráter especial: é o nome que se dá aos tratados bilaterais firmados entre a “Santa Sé” e os Estados, versando sobre regras de cunho religioso.
A disciplinar o direito dos tratados, temos duas convenções, quais seja, a de Havana (1928) e a de Viena (1969), sendo que aquela era composta por apenas 8 países, dentre eles o Brasil, enquanto esta já possui vários pactuantes ratificados. Frise-se ainda que a convenção de Viena apenas trata de acordos firmados entre Estados, não entre Estados e OI’s; quanto a estas, há o texto produzido em Viena, no ano de 1986, porém que ainda não entrou em vigor por não possuir o quorum mínimo para tanto.
O tratado, diferentemente do costume, é estritamente formal e tudo que lhe diz respeito deve ser escrito, sob pena de invalidade. Não existe tratado oral. Igualmente, o tratado não existe até que o texto esteja concluído, antes disso só há um projeto de tratado, sendo incorreto falar o contrário.
Para celebrar o contrato, mister se faz possuir personalidade jurídica de direito internacional, ou seja, tem que ser um Estado, uma OI ou a “Santa Sé”.
É preciso ter em mente que, para que algo seja um tratado, é necessário que o pactuante tenha em mente assumir reais compromissos para o seu Estado ou OI, e não fazer mera diplomacia. A partir desta idéia podemos distinguir um tratado de um gentlemen’s agreement (acordo entre cavalheiros). Esta figura não passa de um acordo pessoal entre estadistas, condicionado no tempo à permanência dos mesmos no poder. No gentlemen’s agreement, em que pese os pactuantes serem chefes de Estado ou de governo, não há ali um ânimo nem formalidade de contrair compromisso para o seu Estado, mas apenas uma manobra diplomática de cavalheirismo, como o nome insinua.
Desta feita, os únicos acordos aptos a produzir efeitos jurídicos e sanções são os tratados.
Todos os tratados são regidos pelo direito internacional, nenhum escapa. Inexiste tratado regulado pelos seus próprios termos, todos obedecem a ditames da ordem do direito das gentes.
Para finalizar esta pequena introdução, cumpre explicar acerca da troca de notas. Este fenômeno pode se apresentar sob duas formas, quais sejam, a troca de notas comunicativa e a troca negocial. A primeira é atividade corriqueira nos foros diplomáticos, consistente em meras comunicações acerca de fatos. A segunda tem caráter negocial e é destinada à produção de acordos bilaterais; enviam-se notas discutindo acerca dos termos da negociação e expressando o consentimento em pactuar. Frise-se aqui que, caso um Estado expresse seu consentimento em tratar, não é propriamente o teor do documento que denota a aquiescência, mas sim a transmissão da nota.

CLASSIFICAÇÃO DOS TRATADOS

Partes. Os tratados podem ser classificados de acordo com cinco critérios: número de partes, natureza das normas, procedimento, execução no tempo e execução no espaço. Quanto ao primeiro critério mencionado, os tratados podem ser bilaterais (quando possuem duas partes pactuantes) ou multilaterais (mais de dois pactuantes). Esta distinção é óbvia e intuitiva.

Procedimento. Em relação ao procedimento, tem-se que, por primeiro, explanar dois conceitos, quais sejam, o de assinatura e ratificação do tratado. A assinatura é o ato que denota o consentimento de um Estado em ser parte de um tratado. Contudo, no mais das vezes, apenas a assinatura não é suficiente para compromissar o Estado, antes é necessária a ratificação, a manifestação do consentimento definitivo de um Estado em participar do tratado. A ratificação se dá em observância ao direito político interno de cada Nação, tornando-se até mesmo despicienda em alguns casos. Apenas para fim de aclaramento, pois veremos detidamente mais tarde, no Brasil a ratificação é feita pelo Presidente da República via decreto após a aprovação do tratado pelo Congresso Nacional.
Ante o quadro exposto acima, é possível distinguir os tratados de procedimento normal (assinatura e ratificação), os de procedimento breve (vige apenas com a assinatura) e os acordos executivos. Este último se dá quando o procedimento do acordo, assinatura e ratificação, é controlado apenas pelo chefe do Executivo, sem consulta ao respectivo Parlamento.

Natureza das normas. Uma classificação controversa é em relação à natureza das normas. Há quem distinga tratados contratuais e normativos. O primeiro seria um tratado pelo qual um sujeito de DIP firmaria negócios com o  outro, para fins de comércio, por exemplo. O segundo conteria normas jurídicas de caráter de lei, regulando determinadas situações jurídicas, como é o caso das Convenções de Viena sobre direito dos tratados e serviços diplomáticos. Os críticos desta classificação, liderados por Hans Kelsen, afirmam ser ela desnecessária, posto que todo tratado é normativo, cria normas de qualquer cunho. Em particular, vemos como acertada essa posição, afinal, o contrato é lei entre as partes. Ademais, se se entender contrato como acordo de vontades, todo tratado é um contrato...

Tempo. No que tange à execução no tempo, tem-se tratados estáticos e dinâmicos. Os tratados estáticos criam situações jurídicas objetivas que tendem à eternidade, como é o caso das cessões territoriais. Já os tratados dinâmicos possuem vigência determinada em se corpo, seja temporária ou indeterminada.

Espaço. Por fim, quando falamos em execução espacial dos tratados, podemos distuinguir aqueles feitos para valerem em todo o território de um Estado, ou valer em apenas partes dele. Como bem assevera Rezek[2], em tratados que versam sobre direito do mar, sobre a Lua ou a Antártica, não há o que se discutir em relação à sua vigência no território, uma vez que o compromisso firmado vincula a administração do Estado.

PRODUÇÃO DO TEXTO CONVENCIONAL

Competência negocial. Cumpre-nos saber quem pode negociar e assinar um tratado. Na esfera internacional, quem sempre possui competência para tal é o chefe de Estado e/ou de Governo. Ao chefe de Estado porque uma de suas missões fundamentais é representar o Estado no plano entre as nações, ainda que seu país seja regido pelo parlamentarismo. O chefe de governo também goza da mesma atribuição, quando distinto da pessoa do chefe de Estado.
Outro que pode representar o Estado ao negociar é o plenipotenciário, aquele que detém, como o nome sugere, plenos poderes para tal. O Ministro das Relações Exteriores sempre se presume plenipotenciário, prescindindo de uma carta de plenos poderes para representar o país. O chefe de missão diplomática detém a mesma prerrogativa, mas apenas para negociar tratados bilaterais entre o seu Estado e o Estado onde está, chamados de Estado acreditante e acreditado, respectivamente. Por derradeiro, todos que detenham carta de plenos poderes, expedida pelo chefe de Estado e enviada ao outro pactuante, podem negociar os tratados.
Também há o caso peculiar das delegações nacionais, as quais são incumbidas da função de ir aos outros Estados com o fim de negociar os tratados, tendo seu chefe como único plenipotenciário. Diz-se peculiar porque uns que não são plenipotenciários negociam o texto, porém, sob a vigilância do chefe da delegação.

Negociação bilateral. Normalmente, a negociação de um tratado bilateral se dá no território de uma das partes, de preferência nas respectivas capitais, porém não há óbice que escolham um terceiro Estado para sediar os negócios.
Quanto ao idioma no qual é feito o tratado, não há o que se discutir quando os pactuantes o compartilham. Porém, surgem dificuldades superáveis quando isso não ocorre. Há quatro alternativas possíveis. A primeira, é lavrar o tratado numa única versão autêntica em uma terceira língua, seja ela inglês, francês, latim ou qualquer uma que se escolha. A segunda solução é lavrar duas versões do texto, em cada idioma correspondente, e atribuir-lhes igual valor. Por terceiro, pode-se lavrar o tratado em mais do que duas versões autênticas e de igual valor, algo que ocorre quando um dos Estados é plurilíngue ou uma das partes é uma OI. A última solução é fazer a coisa em duas ou mais versões e determinar que uma delas seja privilegiada para fins de interpretação.
Para se concluir o tratado, ambas as partes devem estar inteiramente de acordo com seu texto, do contrário “não rola”. A assinatura, por fim, é o que denota a concordância das partes com o texto e o que lhes confere autenticidade.

Negociação coletiva. Ordinariamente, a negociação coletiva de assuntos internacionais se dá por meio de uma conferência do gênero, na qual os Estados discutirão acerca do texto convencional. Acaso a conferência se dê no âmbito de OI’s, é natural que ofereçam suas instalações para sediar os trabalhos. Se não for o caso, algum Estado terá que se oferecer como sede da empreitada, custeando, por conta própria, os trabalhos que lhe são inerentes.
Presentes as partes, deliberarão sobre o idioma a ser usado na versão autêntica do tratado, bem como sobre o(s) que será(am) usado para a comunicação interna. Cumpre estremar versão autêntica der versão oficial. Aquela é a versão na qual se escreve o texto original do tratado; esta é a versão que os Estados, sob sua responsabilidade, produzem em seu idioma a partir da versão autêntica.
É prudente que haja uma espécie de regimento interno disciplinando a ordem dos trabalhos na conferência, sob pena de tumultuar a coisa. Também é conveniente a existência de um projeto de tratado, a fim de que nele se esbocem os traços mestres do texto convencional, que será redigido e discutido em mesas e comissões, na forma regimental.
Com o texto prontinho, tem-se que votá-lo. Nessas grandes conferências internacionais, é raro que todos os pactuantes sejam unânimes quanto ao texto, por isso é que o art. 9, § 2º, da Convenção de Viena sobre direito dos tratados, estipula que o quórum para a adoção de um texto convencional é de 2/3 dos presentes. Por razões de boa diplomacia, busca-se sempre o consenso entre as partes, porém, em não o havendo, dois terços bastam.

Estrutura do tratado. O tratado possui uma parte preambular, uma dispositiva e, vez ou outra, anexos.
O preâmbulo, assim como ocorre nas Constituições nacionais, não tem força normativa, mas admite-se que pode ser usado para fins de interpretação e verificação do alcance e escopo das normas da parte dispositiva.
Os dispositivos são as normas dos tratados, redigidas em linguagem técnico-jurídica, podendo assumir a forma de artigos ou cláusulas.
Por fim, os anexos contêm informações que não é bonito colocar na parte dispositiva, tais como gráficos, ilustrações, especificações técnicas etc. Não se iludam ao pensar que o anexo não possui força normativa, pelo contrário: ele é o complementar dos dispositivos, possuindo tanta força quanto.

EXPRESSÃO DO CONSENTIMENTO

Assinatura. Assinar, no direito das gentes, tem a expressão de firmar compromisso e autenticar o texto convencional produzido. Salvo disposição em contrário, os tratados começam a ter vigência quando de sua assinatura. As disposições em contrário podem ser pela fixação de vacatio legis, ou a espera de ratificação das partes.

Troca de notas. O consentimento também pode ser demonstrado, em acordos de procedimento breve, mediante a transmissão de notas ao Estado com o qual se trata. Frise-se, porém, que não é a assinatura na nota transmitida que denota o consentimento, mas sim a própria transmissão.

Ratificação. Existem discussões acerca do conceito de ratificação, mas o que usaremos aqui é aquele que Rezek, após longas considerações, oferece-nos: “ratificação é o ato unilateral com que o sujeito internacional, signatário de um tratado, exprime definitivamente, no plano internacional, sua vontade de obrigar-se.” (op. cit. p. 50).
Não é tarefa do direito internacional dizer quem, nos Estados, tem poder de ratificar, tampouco dizer como fazê-lo. Cabe à ordem interna de cada Estado soberano estabelecer seu procedimento de ratificação dos acordos internacionais, seja com consulta popular, parlamentar ou à mera vontade do chefe do Executivo. Mais adiante veremos os pressupostos constitucionais do consentimento no Brasil.
Uma característica marcante do ato de ratificação é a sua discricionariedade. Não há qualquer norma de direito das gentes que estipule que todo tratado assinado tem de ser ratificado; o Estado ratifica se quiser. Igualmente, salvo disposição em contrário no texto convencional, não há regra a disciplinar quanto tempo o Estado dispõe para ratificar a coisa. Lembrando aqui, oportunamente, que existe a figura do tratado aberto a adesão. Nesta hipótese, o tratado fica lá prontinho e qualquer Estado pode ratificá-lo e aderir-lhe quando quiser.
Muito embora a ratificação seja discricionária, uma vez realizada ela é irretratável. Caso o sujeito de DIP ratifique determinado tratado, já era; não dá para voltar atrás, a não ser mediante denúncia, disciplinada por regras próprias. Uma exceção feita a este princípio é, no caso de convenções bilaterais, quando uma parte ratifica e fica esperando a outra fazê-lo. Nesse caso, é lícito retratar a ratificação, porquanto o tratado ainda inexiste juridicamente.
No que tange ao caráter formal do ato de ratificação, deve ela ser expressa, nunca tácita. Ainda que o Estado pareça estar cumprindo o acordado numa convenção, isso não representa sua ratificação. Ordinariamente, a ratificação se dá pela comunicação à outra parte, em tratados bilaterais, ou ao depositário, nos multilaterais. Apesar da ratificação ter de ser expressa, pode ela muito bem se dar oralmente, ou pela troca de notas, prescindindo de quaisquer solenidades.

Depositário. O depositário é alguém, geralmente um Estado, imbuído da função secretarial de guardar os originais dos tratados, bem como seus instrumentos de ratificação, denúncia, adesão etc. Justifica-se a figura do depositário pela inconveniência evidente de, em tratados multilaterais, ficar entregando instrumentos de ratificação para todo mundo que assinou o tratado. Destarte, apenas se entregam os instrumentos ao depositário e este trata de comunicar os outros Estados do que houve.

Pressupostos constitucionais do consentimento. Como já foi mencionado, a disciplina acerca de quem tem o poder de resolver acerca da adesão definitiva a tratados internacionais pertence ao direito interno de cada Estado. Mundo afora, cada soberania tem seu jeitinho todo especial de regulamentar tal matéria; veremos a seguir como a coisa se dá no Brasil.
Nosso sistema constitucional dispõe, em seu art. 49, I, ser de competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, enquanto, em sue art. 84, VII, diz ser da incumbência do Presidente da República “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”.
Parece-nos, então, que o Presidente da República celebra e o Congresso aprova. É verdade. Após longas e veementes discussões acerca do tratado, nosso Congresso, caso o aprove, expedirá decreto legislativo aquiescendo com o disposto na convenção. Com o decreto legislativo em mãos, o Presidente da República expedirá decreto ratificando o tratado e tornando-o aplicável em nosso país.
Resta saber a possibilidade de acordos executivos em nosso país. A doutrina reconhece, de forma majoritária, que três tipos de acordo executivos são possíveis dentro de nosso sistema constitucional: os que consignam apenas a interpretação de cláusulas de um tratado já vigente; os decorrentes de forma lógica de tratado já vigente e aqueles que em vista tão somente deixar as coisas no Estado em que estão ou estabelecer meras bases para negociações futuras.[3]
A primeira categoria  do tratado interpretativo, justifica-se porque já há anuência do Congresso com o texto do tratado que se vai interpretar, logo é despiciendo consultá-lo novamente, algo que ocorre também no segundo tipo de tratado citado. A terceira espécie, assim como a primeira, é de diplomacia corriqueira e inoperável se depender da aprovação do Congresso. Nesta terceira, o que há, em verdade, é mera autonomia negocial exercida pelo poder Executivo.

Reservas. Às vezes, um Estado não gosta de pequenas partes de um texto convencional, mas se apraz em tantas outras. Assim, a fim de que o Estado não se obrigue no que ele não queira, criou-se o instituto da reserva, entendida como um qualitativo do consentimento que exclui ou modifica o efeito jurídico de certas disposições do tratado em relação ao Estado reservante.[4]
A reserva tanto pode ocorrer na hora do consentimento prenunciativo (assinatura), quanto no consentimento definitivo (ratificação), o que não pode é acontecer no tratado bilateral. Em tais casos, ou se aceitam os termos da negociação, ou se negocia de novo.
Há entendimentos no sentido de não caberem reservas em certos tratados multilaterais versantes sobre matérias peculiares como direitos humanos, por exemplo. É de se lembrar, contudo, que os pactos podem disciplinar, no seu bojo, a possibilidade ou não de reservas. Entende-se, então, serem permitidas as reservas quando o tratado quedar silente sobre o tema. Geralmente, resolvem-se esses impasses na esfera política, a qual não é de nosso estudo neste momento.
A reserva pode ocorrer no âmbito parlamentar, no momento em que se discute o texto na respectiva casa. Portanto, tanto pode o Congresso opor-se às reservas feitas quando da assinatura, quanto anuir com o texto e impor-lhe outras ou novas reservas.

Vícios do consentimento. Assim como já provavelmente visto em direito civil, o consentimento no âmbito internacional pode ser maculado por alguns eventos, os quais se verão a seguir.
Pode ocorrer de o chefe do Executivo ratificar um tratado em inobservância às suas regras de direito interno. Sobre esse assunto dispõe a Convenção de Viena, em seu art. 46, o seguinte:

Disposições de Direito Interno Sobre Competência Para Concluir Tratados. 1. Um Estado não pode invocar o fato de seu consentimento em obrigar-se por um tratado ter sido manifestado em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência, para concluir tratados, como causa de nulidade de seu consentimento, a não ser que essa violação seja manifesta e diga respeito a uma regra de seu direito interno de importância fundamental. 2. Uma violação é manifesta se for objetivamente evidente para qualquer Estado que proceda, na matéria, na conformidade da prática normal e de boa-fé.

Regra de importância fundamental, a qual o texto faz referência, é somente a escrita no bojo constitucional do Estado, não se equiparando a fundamentais as leis ordinárias. Conclui-se, dessarte, que apenas há nulidade quando o consentimento é expresso em dissonância com a Constituição, jamais com outro tipo de regra.
O erro, dolo, corrupção ou coação sobre o negociador também faz do tratado nulo de pleno direito[5]. Melhor sorte não assiste à coação sobre o próprio Estado pactuante, algo não raro na história mundial.
Encerra-se aqui a matéria relativa à expressão do consentimento.

ENTRADA EM VIGOR DO TRATADO

Vigência. A exemplo das leis internas, pode o tratado entrar em vigor no momento de sua assinatura ou ratificação, assim como pode haver um período de vacatio legis. Na primeira hipótese, o acordo já é executável naquele momento da assinatura ou da ratificação, perfazendo-se como ato jurídico. Outras vezes, por conveniência operacional, difere-se o momento da vigência e executoriedade das normas tratadas para além do momento da expressão do consentimento, demorando trinta ou mais dias para o tratado vigorar.

Registro e publicidade. No curso da história, não foram raras as vezes nas quais celebrou-se tratados secretos, conhecidos apenas pelos Estados pactuantes. Essa prática foi abolida apenas no séc. XX, com a criação da Sociedade das Nações (SN), em 1919. O tratado criador dessa OI previa que todo acordo celebrado deveria ser imediatamente registrado na secretaria da SN, sob pena de não ser obrigatório até tal ato. Isso foi uma inovação que possibilitou o conhecimento de todos acerca dos tratados, direitos e deveres dos Estados.
Semelhante sistema vigora hoje sob a égide das Nações Unidas, tornando imperativo registro dos tratados e sua publicação. Abre-se um parêntese aqui para salientar que o registro não é condição de validade do tratado, mas sim um requisito para sua obrigatoriedade e invocação perante os órgãos da ONU.
Coexistente com o sistema de registro da ONU, atuam as organizações regionais, tais como a OEA, Liga dos Estados Árabes etc. In casu, os tratados vão sendo registrados ratione materiae, de acordo com o previsto no regramento da correspondente OI.

Incorporação ao direito interno brasileiro. Os tratados não permanecem estranhos à ordem jurídica interna de determinada soberania, antes a integra e deve ser observada. No Brasil, a recepção dos tratados ocorre, como o é com as outras normas internas, ao momento da publicação no Diário Oficial da União (DOU), observado, contudo, os períodos de vacatio.
Aquelas convenções cuja aprovação do Congresso se fez necessária são promulgadas via decreto do Presidente da República, publicado no DOU. Os acordos executivos são publicados no DOU com o aval do Ministro das Relações Exteriores e da divisão de atos internacionais do Itamaraty.

O TRATADO EM VIGOR

Efeitos sobre as partes. A partir do momento em que os tratados começam a viger nas ordens interna e internacional, já é apto a produzir efeitos entre as partes e seus súditos. Dependendo da estrutura interna de cada Estado, terá o tratado caráter de lei nacional, com observância imperativa.
Quanto à idoneidade dos acordos internacionais produzirem efeitos sobre os indivíduos, esta não difere em nada das leis de cada país, bastando saber a quem o tratado se dirige.[1] Ora, se o Estado, por sua vontade expressada no âmbito de seu território, pode impor deveres e direitos aos indivíduos, porque não o poderia mediante vontade sua expressa no plano entre nações? O fundamento de validade das normas é o mesmo, qual seja, competência do Estado para fazê-las.

Efeitos sobre terceiros. Certos tratados criam situações jurídicas objetivas que demandam o olhar por parte da comunidade internacional, por ser de seu interesse.
Há convenções que criam efeitos difusos, ou seja, impõem-se erga omnes. Exemplo corriqueiro é o dos tratados que versam acerca de cessão ou permuta territorial, gerando alterações cartográficas. Outro caso prático é de dois Estados que compartilham o curso de um mesmo rio abrirem-no para livre navegação: todos os Estados podem se aproveitar de tal avença.
A cláusula de nação mais favorecida também é uma forma de produção de efeitos jurídicos a terceiros na qual um terceiro sofre consequências diretas de uma convenção por força do disposto em acordo anterior, que o vincule a uma das partes. Para ilustrar o que seja esse tipo de cláusula, imaginemos um tratado de tributação entre o Brasil e a Argentina. Neste tratado, firmou-se que, entre os dois, importar-se-iam bois com determinado imposto à alíquota de 3% sobre o valor do boi. Porém, pôs-se uma cláusula no sentido de que, caso um dos Estados viesse a celebrar com um terceiro outro acordo sobre tributação de importação de bois com uma alíquota menor do que 3%, o primeiro Estado (que não pactuou com o terceiro) teria direito a igual benefício na importação dos bovinos. Destarte, acaso o Brasil, em decorrência de convenção celebrada, viesse a importar bois do Peru com o imposto de apenas 1% sobre o valor das coisas, a Argentina teria direito a também importar o gado com o imposto de 1%.
Quanto à possibilidade de um tratado garantir direitos a terceiros, a Convenção de Viena dispõe, em seu art. 36, que, mesmo querendo criar direitos para terceiros, carece-se de aprovação destes. Porém, o dispositivo determina que o silêncio importa em anuência.
No que toca à criação de obrigação para um terceiro Estado, esta é possível se, e somente se, o Estado expressamente a aceitar. Todavia, a aquiescência em cumprir a obrigação não faz do Estado obrigado parte do acordo.

Duração. Os tratados de vigência estática, tais como os que versam sobre cessão territorial, duram por toda a eternidade, como já visto quando se falou acerca da classificação dos tratados. Os outros geralmente contém o tempo de sua duração estipulado em seu arcabouço, seja para viger por certo tempo, com a possibilidade de renovação, seja para viger de maneira indeterminada, sendo que esta é presumida quando o tratado nada dispõe sobre o tema.

Emendas. Emenda é o nome que se dá a qualquer alteração não ampla aos textos dos tratados, enquanto que as reformas são as modificações de caráter mais amplo. Não há segredo quanto a elas; caso o tratado admita-as, o processo de aprovação segue o mesmo rigor do método de expressão do consentimento, inclusive com as consultas parlamentares, se necessárias.

Violação. Acaso um Estado viole substancialmente um tratado do qual é parte, os demais tem o direito de entender o tratado como extinto em relação ao violador. Por violação substancial, de acordo com o art. 60 da Convenção de Viena, deve-se entender tanto o repúdio puro e simples do compromisso quanto a afronta a um dispositivo essencial para a consecução do seu objeto e finalidade.

Interpretação. Interpretar significa determinar o exato sentido das normas expressas num texto, in casu, o tratado internacional. A interpretação pode ser autêntica, quando realizada pelos Estados pactuantes, ou jurisdicional ou judiciária, quando feita por tribunais arbitrais ou internacionais, respectivamente.
Quanto aos métodos, não se distinguem substancialmente dos já estudados na cadeira de hermenêutica, sendo despiciendo coloca-los aqui.

Conflito entre tratados. No caso de dois tratados parecerem divergentes entre si, há de se perquirir, antes de pensar em uma solução, se os dois versam sobre a mesma matéria e se as partes são as mesmas. Na negativa, não há conflito algum, você que é burro mesmo. Em caso afirmativo, mister raciocinar um pouco mais.
Caso haja identidade da fonte de produção normativa, aplicam-se os velhos princípios lex posteriori derrogat priori e lex speciali derrogat generali. Havendo incompatibilidade entre os tratados, mesmo que não se disponha a derrogação, os princípios citados supra sempre resolvem a coisa, com a devida cautela, é claro.
Na existência de diversidade das fontes de produção normativa, não há solução, é o que chamamos de conflito real. O exemplozinho mais aludido na doutrina é o seguinte: A França celebra um tratado com o Kosovo para ajuda-lo ofensivamente nas guerras em que adentrar. Por outro lado, a França celebra com Montenegro um tratado para auxílio defensivo em seus conflitos armados. De repente, o Kosovo invade Montenegro; e aí, como fica a França?
Nessa situação, não há solução jurídica que dê jeito, a França cometerá um ilícito internacional e, por razões de ordem política, prestará auxílio a apenas um dos beligerantes.

EXTINÇÃO DOS TRATADOS

Vontade comum. A extinção do tratado, que se chama ab-rogação, pode se dar com a vontade comum das partes predeterminada ou superveniente. Uma das hipóteses de predeterminação ab-rogatória é o texto de o tratado disciplinar quando deixará de surtir efeitos, assim estabelecendo seu dies a quem. Por decorrência lógica, também há extinção de tratados que são acessórios, reputando outro como principal.
Também é causa de extinção do tratado o seu esgotamento operacional. Imagine-se o seguinte caso: Luxemburgo acorda com a China a compra de 30 aviões da China Air Force, 10 a cada ano. Sem muito esforço intelectual percebe-se que o tratado estará extinto em três anos quando todos os aviões forem entregues.
Em tratados multilaterais também é possível estabelecer a ab-rogação em decorrência de falta de quorum suficiente. Nesse caso, reduzindo-se o número de partes para aquém do estabelecido como mínimo, extinguir-se-á o acordo. Consigne-se, porém, que tal fato só ocorrerá se expressamente constar do texto convencional.
Supervenientemente, podem muito bem as partes de um tratado, seja ele bi ou multilateral, extingui-lo pela vontade comum de todas as partes. Caso haja previsão no texto, e somente havendo, também é possível a ab-rogação por voto da maioria das partes, nada obstando que as partes remanescentes firmem um novo tratado sobre aquela matéria.
Por fim, um tratado pode ser ab-rogado de maneira superveniente por outro tratado que contenha as mesmas partes.

Vontade unilateral. Pode o Estado promover unilateralmente a sua saída de um compromisso internacional mediante o ato denominado denúncia. Esse ato, a menos que o tratado seja bilateral, não extingue o tratado em si, mas tão somente desobriga o denunciante a cumprir com a convenção.
Certos tratados, porém, são imunes à denúncia por sua própria natureza, tais quais os tratados de vigência estática. É difícil entrar na cabeça de qualquer um que um Estado que cede parte de seu território a outro possa extinguir o tratado por sua própria vontade, porquanto, com efeito, a convenção celebrada se traduz mais num título jurídico do que num acordo internacional. [2] Há quem pregue, também, que certos tratados normativos de relevante valor moral e social, tais como os de direitos humanos, são imunes a denúncia. Embora tal fato seja de difícil ocorrência, na verdade não se denunciam esses acordos por razões de ordem política, não jurídica.
É conveniente que o texto convencional discipline acerca de possibilidade de denúncia, todavia, caso não o faça, cumpre examinar o texto para saber se ele é denunciável ou não, de acordo com sua natureza.
Deve o Estado que queira denunciar um tratado comunicar as outras partes de seu sentimento, dando-lhes um pré-aviso doze meses antes de sair definitivamente do acordo.
Quanto à sua expressão, pode a denúncia ser declarada por meio de notificação, carta ou instrumento próprio, dirigido ao outro Estado, caso seja um tratado bilateral, ou dirigido ao depositário, nos multilaterais, que fará saber da denúncia aos demais pactuantes.
Há celeuma doutrinária acerca da possibilidade de denúncia parcial. Sem adentrar nas discussões, parece pacífico ser possível a denúncia parcial quando o tratado era passível de reservas e aberto à adesão, do contrário entendem os doutrinadores que não se admite a denúncia parcial.

Denúncia e direito interno. É um princípio, no plano do direito das gentes, que todos os atos internacionais devem ser feitos em conformidade com o direito interno de cada soberania. Em nações onde a reunião de vontades do Executivo e do Legislativo é necessária para o consentimento definitivo em matéria de tratados, surge a dúvida se o esforço de apenas uma dessas vontades é suficiente para desobrigar o Estado.
Não me vejo apto a adentrar de maneira substancial nessa discussão, porém, em consonância com as ideias de Rezek, vejo como possível a denúncia por parte de um só dos órgãos. Transcrevo o argumento sustém minha posição:

[...] cumpre entender que as vontades reunidas do governo e do parlamento presumem-se firmes e inalteradas, desde o instante da celebração do tratado, e ao longo de sua vigência pelo tempo afora, como dois pilares de sustentação da vontade nacional. Isso levará à conclusão de que nenhum tratado [...] deve continuar vigendo contra a vontade quer do governo, quer do Congresso. O ânimo negativo de um dos dois poderes políticos em relação a tratado há de determinar sua denúncia, visto que significa o desaparecimento de uma das bases em que se apoiava o consentimento do Estado.[3]

Aceitando esse argumento, fazem-se válidas as denúncias feitas por vontade exclusiva do poder Executivo e, igualmente, as feitas apenas pelo poder Legislativo. Nesse último caso, a denúncia se dará por meio de lei ordinária, com a qual o chefe do Executivo anuirá ou não, possível, no Brasil, a derrubada do veto, que demanda um quorum maior de parlamentares votantes. É inegável que esse sistema deixa o órgão legislativo em desvantagem, porém é o que decorre da lógica.

Mudanças circunstanciais. Pode acontecer de, em decorrência de causa superveniente à celebração do tratado, torne-se impossível sua execução ou alterem-se fundamentalmente as circunstâncias que outrora foram determinantes para a celebração do pacto.
No primeiro caso, a Convenção de Viena sobre direito dos tratados dispõe:

Artigo 61
Impossibilidade Superveniente de Cumprimento
1. Uma parte pode invocar a impossibilidade de cumprir um tratado como causa de extinção ou de retirada, se essa impossibilidade resultar da destruição ou do desaparecimento definitivo de um objeto indispensável à execução do tratado. Se a impossibilidade for temporária, pode ser invocada somente como motivo para suspender a execução do tratado.
2. A impossibilidade de cumprimento não pode ser invocada por uma das partes como causa de extinção, de retirada ou de suspensão da execução do tratado, se essa impossibilidade resulta de uma violação pela parte que a invoca, quer de uma obrigação do tratado, quer de qualquer outra obrigação internacional em relação a qualquer outra parte no tratado.

Destarte, caso a execução de um tratado tornar-se impossível sem o Estado ter-lhe dado causa, resolver-se-á o tratado ou o Estado dele se retirará.
Outra fatalidade que pode ocorrer é a mudança de circunstâncias fundamentais, que demanda a invocação da cláusula rebus sic stantibus. Para invocar essa cláusula e eximir-se da obrigação, mister se faz a concorrência dos seguintes fatores:
1 – As circunstâncias que se alteraram devem ser contemporâneas ao consentimento do pacto e devem ter constituído condição essencial desse consentimento;
2 – A mudança dessas circunstâncias tem de se mostrar fundamental, não se prestando para a invocação do rebus sic stantibus as mudanças ordinárias e corriqueiras que se dão no cotidiano internacional;
3 – Tal mudança deve-se entender imprevisível, do contrário demonstrará que o Estado só estava sendo sacana ao celebrar a coisa.
Por fim, é necessário que a parte invoque a cláusula antes de descumprir com o compromisso, sob pena de constituir uma afronta às outras partes pactuantes.

Jus cogens. Esse jus cogens seria um conjunto de normas que se impõem objetivamente aos Estados no plano do direito internacional, tal qual as normas de ordem pública que vigoram no direito interno. O grande problema disso na cena internacional é que esta difere e muito da ordem interna, haja vista assentar-se sobre o consentimento, o pacta sunt servanda. Ainda que se admita a existência dessas normas cogentes no plano internacional, é mais difícil ainda saber quem é apto para ditar o que é cogente e o que não é.
Não obstante o exposto supra, a Convenção de Viena diz o seguinte:

Artigo 53.Tratado em Conflito Com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (Jus Cogens).
É nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional geral da mesma natureza.
Artigo 64. Superveniência de uma Nova Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (Jus Cogens).
Se sobrevier uma nova norma imperativa de direito internacional geral, qualquer tratado existente em conflito com essa norma torna-se nulo e extingue-se.

Isso é algo que vai de encontro frontal a toda sistemática do DIP, sendo que, inclusive, fez com que países como Brasil e França evitassem ratificar a Convenção de Viena[4].
Aqui encerramos a matéria relativa aos tratados internacionais.


[1] REZEK. Op. cit., p. 78.
[2] REZEK. Op. cit., p. 103.
[3] Ibidem, p. 108. Grifo no original.
[4] REZEK. Op. cit., p. 112.






[1] REZEK. Op. cit.
[2] Op. cit.
[3] REZEK. Op. cit., p. 62.
[4] Cf. Convenção de Viena sobre direito dos tratados, art. 2º, § 1º, d.
[5] Os conceitos de erro, dolo e coação são idênticos ao do direito civil. Corrupção pode ser entendida como qualquer oferecimento de vantagem ilícita à pessoa do negociador.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Domínio público internacional: breve estudo.

Neste domingo, exaustivamente, procedi às minhas anotações corriqueiras sobre direito internacional público. Gastei tempo lendo textos normativos e doutrina, e, por algum motivo, quis publicar o escrito aqui.


DOMÍNIO PÚBLICO INTERNACIONAL

Introdução. Denomina-se domínio público internacional os espaços físicos cuja utilização é interessante a mais de um Estado soberano ou a toda a comunidade internacional, incluídos aí o mar, os rios internacionais, o espaço aéreo, o espaço sideral e a Antártida. O polo norte não suscita grandes controvérsias, por isso, assim como a Antártida, seguindo a linha de Rezek, será tratado em breves linhas neste mesmo tópico.
Ao invés do continente antártico, o polo norte não possui terra, no mais puro sentido da palavra. Trata-se apenas de uma imensa porção d’água do mar congelada, com condições absolutamente inóspitas para o povoamento humano e desprovida de riquezas. Por essas simples razões, ninguém é dono daquela região, tampouco se interessa muito por ela fora da questão das rotas aéreas dela sobrevoadoras. Cuida-se, com efeito, de águas internacionais congeladas.
No que tange à Antártida, ninguém a domina. Em Washington D.C., no ano de 1959, celebrou-se um tratado (aberto à adesão) a regulamentar o continente, estabelecendo que seria usado apenas e tão somente para fins pacíficos, tais como pesquisa científica e preservação de recursos biológicos, proibido o estabelecimento de bases ou fortificações , as manobras militares, os testes com armas de qualquer natureza e o lançamento de resíduos radioativos.[1]

O MAR

Fontes do direito do mar. Durante séculos, a exemplo de outros ramos do DIP, o direito do mar tinha base essencialmente costumeira. Celebraram-se em Genebra, 1958, diversas convenções sobre os assuntos atinentes ao direito do mar, as quais, infelizmente, mostraram-se em descompasso com a realidade a evoluir. No ano de 1982, em Montego Bay, Jamaica, firmou-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, ratificada pelo Brasil em dezembro de 1988, entrando em vigor em 16.11.1994, quando o quórum mínimo de sessenta Estados ratificantes se efetivou. Doravante, chamaremos esse texto apenas de Convenção de Montego Bay.

Águas interiores. Consideram-se águas interiores as situadas no interior da linha de base do mar territorial de um Estado, que é a  linha de baixa-mar ao longo da costa. Exemplificam-se como águas interiores as contidas na baía de Guanabara. Sobre essas águas o Estado exerce sua soberania de forma absoluta, não existindo, nelas, direito de passagem inocente. Para adentrar a águas interiores, tanto os navios mercantes quanto militares devem pedir autorização ao Estado que lhes detém o poder.
Não se considera águas interiores os rios, lagos e mares internos do Estado, já que esses pertencem a sua soberania naturalmente, não necessitando o direito internacional pensar sobre eles.

Mar territorial e zona contígua. Chama-se de mar territorial a porção de água contígua ao território do Estado, sobre a qual exerce sua soberania, na forma do direito internacional. Sua extensão pode ser definida pelo Estado, desde que não ultrapasse o limite de 12 milhas marítimas (22,224 Km), contados a partir das linhas de base.[2]
As ilhas, de igual forma, devem dispor de mar territorial que as circunde, a menos que se trate de baixios a descoberto.

1. Um ‘baixio a descoberto’ é uma extensão natural de terra rodeada de água, que, na baixa-mar, fica acima do nível  do  mar,  mas  que  submerge  na  preia-mar.  Quando  um  ‘baixio  a  descoberto’  se  encontre,  total  ou parcialmente, a uma distância do continente ou de uma ilha que não exceda a largura do mar territorial, a linha de baixa-mar desse baixio pode ser utilizada como linha de base para medir a largura do mar territorial.
2. Quando um ‘baixio a descoberto’ estiver, na totalidade, situado a uma distância do continente ou de uma ilha superior à largura do mar territorial, não possui mar territorial próprio.[3]

Tratando-se de ancoradouros, ainda que fora do limite do mar territorial, são considerados parte deste, nos termos do art. 12 da Convenção de Montego Bay. Os Portos, por sua vez, não contam para delimitação da linha de base do mar territorial, sendo considerados parte da costa.
Na existência de dois Estados adjacentes ou confrontantes, para fins de delimitação do mar territorial, salvo disposição deles em contrário, vigora o princípio da equidistância. Imagine-se que os Estados A e B possuam entre eles uma distância de 9 milhas náuticas (sinônimo de milhas marítimas): não pode A nem B estipular seus mares territoriais em 12 milhas, sob pena de invadir o território um do outro. Logo, dispõe-se que cada um estabeleça seu mar territorial em apenas 4,5 milhas marítimas, tornando equidistante a linha que divide os dois mares.
Zona contígua é uma zona posterior ao mar territorial, de igual largura deste e contada a partir do seu termo, na qual “o Estado costeiro pode tomar medidas de fiscalização em defesa de sue território e de suas águas, no que concerne à alfândega,  à imigração, à saúde, e ainda à disciplina regulamentar dos portos e do trânsito pelas águas territoriais”.[4]

Direito de passagem inocente. Talvez por uma antiga tradição internacional, a Convenção de Montego Bay assegura a todos os navios o direito de passagem inocente, algo que de certa forma restringe a soberania no mar territorial. De acordo com o art. 19 do citado estatuto, entende-se por passagem inocente a navegação pelo mar territorial não prejudicial à paz, à boa ordem ou a segurança do Estado Costeiro, delimitando o que pode se considerar contrário a esses requisitos. Disciplinam-se especialmente os submarinos, que, no mar territorial estrangeiro, devem navegar na superfície e com o pavilhão (bandeira) arvorado (art. 20).
É dado ao Estado costeiro regulamentar a passagem inocente, podendo elaborar normas públicas sobre as seguintes matérias (art. 21): a) segurança da navegação e regulamentação do tráfego marítimo; b) proteção das instalações e dos sistemas de auxílio à navegação e de outros serviços ou instalações; c) proteção de cabos e dutos; d) conservação dos recursos vivos do mar; e)  prevenção  de  infrações  às  leis  e  regulamentos  sobre  pesca  do Estado costeiro; f)  preservação  do  meio  ambiente  do  Estado  costeiro  e  prevenção, redução e controle da sua poluição; g) investigação científica marinha e levantamentos hidrográficos; h) prevenção das infrações às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários do Estado costeiro. Ademais, pode o Estado costeiro traçar rotas  marítimas de observância obrigatória à passagem inocente (art. 22).
Estabelece-se como ilícito ao Estado costeiro impor óbices ou dificuldades à passagem inocentes, aí incluindo a discriminação de navios, assim como impor aos navios estrangeiros obrigações que tenham na prática o efeito de negar ou dificultar o direito de passagem inocente, seja lá o que esse abertíssimo conceito do art. 24 da Convenção signifique.
Dentre os direitos do Estado costeiro, insere-se o de tomar as medidas necessárias para impedir toda passagem que não seja inocente. Também é lícito, em prol da segurança do Estado estrangeiro, suspender essa passagem em certas regiões, desde que todos sejam devidamente avisados previamente.
Quanto às taxas, não podem  ser  impostas a um  navio  estrangeiro  que  passe  pelo  mar  territorial  a  não  ser  como remuneração  de  determinados  serviços  prestados  a  esse  navio.  Estas  taxas  devem  ser  impostas  sem discriminação. Por conseguinte, é vedada a imposição de taxas a título exclusivo de pedágio, isto é, apenas pela passagem do navio (art. 26, nº 1)

Zona econômica exclusiva (ZEE). A zona econômica exclusiva é uma zona situada além do mar territorial e a este adjacente, podendo ser de tamanho regulado pelo Estado costeiro a quem pertence, desde que não vá além de 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. Na zona econômica exclusiva, o Estado costeiro tem (art. 56): a) direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, vivos ou não vivos das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, e no que se refere a outras atividades com vista à exploração e aproveitamento da zona para fins econômicos, como a produção de energia a partir da água, das correntes e dos ventos; b) jurisdição no que se refere a: i) colocação e utilização de ilhas artificiais, instalações e estruturas; ii) investigação cientifica marinha; iii) proteção e preservação do meio marinho.
Sendo uma região não abrangida pela suprema soberania estatal, conferem-se certos direitos à comunidade internacional na ZEE, tais como os de livre navegação, sobrevoo, colocação de cabos e dutos, “bem  como  de  outros  usos  do  mar  internacionalmente  lícitos” (art. 58, nº 1).

Plataforma continental e fundos marinhos. Nos termos do art. 76 da Convenção de Montego Bay, a plataforma continental de um Estado costeiro compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial, em toda a extensão do prolongamento natural do seu território terrestre, até ao bordo exterior da margem continental, ou até uma distância de 200 milhas marítimas das linhas de base a  partir  das  quais  se  mede  a  largura  do  mar  territorial,  nos  casos  em  que  o  bordo  exterior  da  margem continental não atinja essa distância. Trata-se daquela faixa de subsolo inclinada suavemente até alcançar o grande abismo do talude continental, onde o mar ruge em profundidade.
No geral, o bordo exterior da margem continental, isto é, o limite da área dos fundos marinhos, encontra-se justamente a duzentas milhas marítimas da linha base do mar territorial. Quando isso não ocorre, a plataforma continental se estende até que alcance o bordo, desde que não ultrapasse o limite de 350 milhas náuticas.
 











Sobre a plataforma o Estado costeiro exerce seus direitos de soberania em relação à exploração e aproveitamento dos seus recursos naturais. Ainda que o Estado não exerça tais direitos, a ninguém é dado explorar a plataforma continental sem a anuência do costeiro, ao contrário do que ocorre com a ZEE, onde os Estados sem plena capacidade para sua exploração devem tornar os excedentes acessível a outros Estados, mediante acordos bilaterais ou regionais.
O leito dos fundos marinhos é chamado pela Convenção de Montego Bay de área, constituindo-se em patrimônio comum da humanidade. Para administração da área, instituiu-se uma entidade chamada autoridade internacional dos fundos marinhos, integradas pelos Estados-partes do tratado, e, ademais, para sua exploração, de acordo com o deliberado pela autoridade, tem-se a empresa internacional dos fundos marinhos.

Alto mar. No alto-mar, porção de águas internacionais não pertencente à soberania de nenhum Estado, vigora o princípio da liberdade dos mares, aí incluídas as liberdades de navegação, sobrevôo, colocação de cabos e dutos submarinos, construção de ilhas artificiais e congêneres, pesca e investigação científica. Todos os Estados podem exercer essas liberdades, mesmo aqueles sem litoral, desde que seus navios, públicos ou privados, arvorem sua bandeira.
Como restrições a toda essa liberdade, impõe-se que a utilização do alto mar se dê para fins pacíficos, proibindo-se, destarte, seu uso para fins de guerra. Igualmente, é imposta a todos a colaboração para preservação dos recursos vivos do mar, mesma sorte quando à repressão do tráfico de escravos, tráfico de drogas, pirataria e das transmissões não autorizadas a partir do oceano. [5]
No que toca à disciplina da navegação em alto mar, em especial à nacionalidade dos navios, é mister, em todo navio, a presença da bandeira de uma nação, devendo haver um "vínculo substancial" navio-nação. Justifica-se pelo fato da jurisdição em alto mar ser exercida de acordo com o pavilhão de cada embarcação, vale dizer, o Estado representado pela bandeira exerce jurisdição sobre o navio correspondente.
É lícitos aos navios de guerra exercer autoridade sobre mercantes de sua mesma bandeira, mas, para que possa constranger um navio mercante (nunca de guerra) de pavilhão diverso, é necessária a existência de fundada suspeita de que esse navio mercante seja responsável por pirataria, tráfico ou transmissões clandestinas, ou, então, de que a bandeira hasteada não represente a nacionalidade verdadeira do barco.
Assegura-se ao Estado costeiro o direito de perseguição contínua (hot pursuit) , que é a prerrogativa dos navios de guerra do Estado costeiro perseguir navio mercante que tenha cometido ilícitos em seu mar territorial ou zona contígua. Para ser lícita, a hot pursuit deve ter termo inicial na soberania do Estado costeiro, não ser interrompida e não adentrar a mar territorial d'outro Estado.

Estreitos e canais. Nos estreitos, muito embora costumem pertencer sempre a um ou mais mares territoriais, a Convenção de Montego Bay (art. 38) assegura sempre o direito de passagem em trânsito a navios e aeronaves, civis ou militares, de qualquer bandeira. A diferença básica entre a passagem inocente e a em trânsito é que nesta última são favorecidas também as aeronaves no espaço aéreo do estreito, o que não é abrangido pela simples passagem inocente.
Os canais, que se diferem dos estreitos pela sua artificialidade, possuem regimes singulares, de acordo com o Estado ao qual pertencem. Os mais famosos canais do mundo moderno são os de Kiel, na Alemanha; de Suez, estremando África e Ásia e pertencendo ao Egito; de Panamá, ligando a O Atlântico ao Pacífico por meio de uma brecha na América Central. No de Kiel, assegura-se a livre navegação, percebendo a Alemanha pequenas taxas. Nos outros dois, Suez e Panamá, vigora o mesmo princípio, pagando-se (gordas) taxas a esses dois Estados.

RIOS INTERNACIONAIS

Tópico único. Diz-se internacional um rio que banha mais de um Estado soberano. Limítrofes, contíguos, ou de fronteira, são os cursos d'água que servem como linha divisória entre duas soberanias; sucessivos são aqueles cujo curso começa num Estado e passa por outro. Esses dois tipos não se excluem: pode muito bem haver um rio internacional sucessivo que, em certa área, também sirva como fronteira entre dois Estados.
O texto a regular os rios internacionais é a Convenção de Barcelona, de 1921, estatuindo os princípios de liberdade de navegação e igualdade no tratamento de terceiros. Não obstante, os Estados ribeirinhos podem decidir como administrar o rio, da maneira que lhes convenha, desde que não criem óbices à navegação.
Anote-se que a Convenção de Barcelona não é a única carta a disciplinar os rios; existem tratados bilaterais, principalmente na América do Sul, regulando a matéria.

ESPAÇO

Espaço aéreo. Sobre a coluna de ar adjacente a seu território, contando-se, inclusive, o mar territorial, exerce o Estado sobre sua soberania plena, como se ali terra fosse. Inexiste norma ou costume internacional a garantir a passagem inocente  de aeronaves por sobre o segundo céu de um Estado, sendo necessária, para a passagem de qualquer máquina voadora, a permissão do Estado via tratado ou de modo avulso, seja o avião civil ou militar. Frise-se que essa soberania só vai até o limite da atmosfera, a partir da qual cessa.
No espaço aéreo acima do alto mar, aplicam-se as mesmas liberdades que concernem a este, vez que o alto mar é a terra da liberdade.

Espaço extra-atmosférico. Além da atmosfera, no espaço cósmico ou sideral, como chamam alguns, não existe dono nem soberania. Regula-se pelo tratado sobre o espaço exterior, celebrado no âmbito da Assembleia Geral da ONU, Nova Iorque, 1967. Determinou-se que todo o espaço e os corpos celestes são de acesso livre, para fins pacíficos, insuscetíveis de apropriação ou anexação a qualquer Estado. Ademais, dispõe-se que seu uso e exploração devem ser feito em benefício coletivo, com acesso geral às informações colhidas.


[1] REZEK. Op. cit., p. 293.
[2] Os arts. 6º e 7º da Convenção de Montego Bay definem os critérios para o estabelecimento das linhas de base.
[3] Art. 13 da Convenção de Montego Bay.
[4] REZEK. Op. cit., p. 302.
[5] De acordo com o art. 101 da Convenção de Montego Bay, pirataria se define como “Todo ato ilícito de violência ou de detenção ou todo ato de depredação cometidos, para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de uma aeronave privados, e dirigidos contra: i) um navio ou uma aeronave em alto mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos; ii) um navio ou uma aeronave, pessoas ou bens em lugar não submetido à jurisdição de algum Estado; b) todo ato de participação voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que o pratica tenha conhecimento de fatos que dêem a esse navio ou a essa aeronave o caráter de navio ou aeronave pirata; c) toda a ação que tenha por fim incitar ou ajudar intencionalmente a cometer um dos atos enunciados nas alíneas a) ou b)”.
Por “transmissões não autorizadas”, entenda-se (art. 109): “transmissões de rádio ou televisão difundidas a partir de um navio ou instalação no alto mar e dirigidas ao público em geral com violação dos regulamentos internacionais, excluídas as transmissões de chamadas de socorro”.

Referência bibliográfica: REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 9. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2002; anotações de aula.